Homenagem: 160 anos de Édouard-Alfred Martel (01/07/1859 – 03/06/1938)

No dia primeiro de julho de 1859, nascia em Pontoise, na França, aquele que é considerado internacionalmente o fundador ou o “pai” da espeleologia: Édouard-Alfred Martel.

Sua primeira experiência com o mundo subterrâneo aconteceu quando visitou a Grotte de Gargas, em uma viagem de férias com os pais, em Haute-Garonne, nos Pirineus, França, em 1866.

Embora tenha se formado em direito e exercido a profissão por alguns anos, foi a espeleologia que de fato permitiu a Martel uma realização pessoal. Ele influenciou gerações de praticantes que, como ele, foram além da recreação e da contemplação pura e simples que essa atividade propicia.

Martel, acumulou desde a sua infância, um interesse pelo conhecimento e pela vida ao ar livre. Em particular pela literatura de ficção de Julio Verne e pelas revistas de Geografia, o que o conduziu a uma especial afinidade com a cartografia, especificamente pela cartografia da França.

Esse interesse culminou no Martel empreendedor de complexas e detalhadas expedições espeleológicas. Coisa que nunca havia ocorrido na França, embora James Farrel tivesse liderado algo parecido para a exploração da Ingleborough Cave, North Yorkshire, na Inglaterra, em 1854.

Entre 27 e 28 de junho 1888, acompanhado de um grupo de colaboradores[1], Martel fez a travessia do conduto principal, com cerca de 2 km, do Abîme de Bramabiau (“O Touro que Muge”), em Gard, na França.

Plante e perfil do Abîme de Bramabiau. Elaborado por Martel em 1888

A travessia foi um marco! Um feito até então tido como impossível, pois essa caverna assombrava a comunidade do entorno. O Bramabiau era cercado de lendas sobre coisas e pessoas sumidas nas suas águas e nunca reaparecidas. Mas não parou por aí. A data dessa exploração espeleológica é tida desde então como a referência inaugural da espeleologia na França e no Mundo.

Com o tempo, a notoriedade de Martel só fez aumentar e suas marcas eram cada vez mais imponentes. Em 1898, Martel alcançou, com o emprego de escada de cordas, a profundidade de -212m no Abîme de Rabinel, em Hérault, França, considerada a caverna mais profunda do mundo naquele momento. Ele também coordenou uma das primeiras experiências de espeleomergulho na Fontaine-de-Vaucluse, na França, além de ter sido o primeiro a empregar corantes traçadores para determinar sistemas subterrâneos.

Entre uma e outra conquista, a atividade de Martel foi resultando em descobertas de animais cavernícolas, descrições de redes hídricas subterrâneas, conexões entre cavernas até então consideradas independentes e de sítios arqueológicos e paleontológicos. Isso deu destaque cada vez maior aos seus feitos e atraiu novos praticantes. A ascensão da prática foi tal que em 1890, o historiador Emile Rivière cunhou o termo “espeleologia” a partir da junção dos vocábulos gregos spelaion (caverna) e logos (trabalho). O termo acabou se popularizando embora o próprio Martel reconheceu que anteriormente a ele, o crédito devia ser dado a Adolph Schmidl que, em 1854, havia apelidado seus estudos nas cavernas da Eslovênia de höhlenkunde.

Mas não foi somente por suas conquistas esportivas que Martel ficou conhecido e deve ter sua existência rememorada. Sua atuação foi além da recreação e a espeleologia ultrapassou o status de hobby, alcançando o para Martel acabou se tornando um ofício. Uma experiência bastante negativa ocorrida em 1891 foi o princípio de uma de suas mais destacadas facetas que era a preocupação com a conservação ambiental. Após explorar com seus companheiros o Gouffre de Ia Berrie, em Cahors, caminharam por cerca de 300 metros e encontraram uma ressurgência de águas cristalinas. O calor forte e a consequente sede foram compensados ali. No mesmo dia todos foram hospitalizados tendo Martel sofrido as maiores consequências da infecção pela água contaminada.

Em suas diversas explorações Martel notava que o descarte de resíduos e mesmo de animais doentes e mortos nos sumidouros dos rios subterrâneos, era prática comum dos camponeses franceses. O que ele comprovou com a própria experiência era que a decomposição desses corpos afetava diretamente a agua subterrânea. Mas, ao contrário do que se supunha, ele pôde comprovar que o fluxo subterrâneo pelo calcário não era suficiente para depurar a água dessa carga patogênica e isso podia explicar uma série de enfermidades que afetavam populações inteiras na França, em cidades abastecidas por fontes calcárias erroneamente consideradas puras pela cristalinidade da água.

Martel iniciou a partir daí uma ampla campanha nacional pelo fim do descarte de resíduos nos sumidouros e pela conservação dos recursos hídricos subterrâneos franceses. Conversou com autoridades políticas, acadêmicas e populares ponderando sobre as ligações subterrâneas entre sumidouros e fontes calcárias e do perigo representado pelo uso daqueles mananciais como depósitos de resíduos. Recebeu algum apoio e muita resistência. Até que em 1902 suas teses foram reconhecidas pela promulgação da Lei de Saúde Pública de proteção aos mananciais subterrâneos como forma de controle, embora o problema não tenha sido definitivamente resolvido, de infecção por água contaminada.

Além de ter inventado e adaptado juntamente com seus companheiros uma série de equipamentos de alpinismo e de trabalho para a exploração subterrânea, o que lhe permitiu permanências cada vez mais prolongadas nas cavernas, as contribuições de Martel alcançaram também o ambiente científico. Suas teses sobre a porosidade pré-existente como caminho natural da água no interior da rocha, bem como sua recusa em aceitar a tese metafísica do lençol freático calcário, entre outras afirmações relevantes, passaram a ser intensamente debatidas nos meios acadêmicos.

Um de seus maiores legados foi a divulgação dos estudos das cavernas. Martel viajou por diversos países europeus e pelos EUA buscando fomentar a prática da espeleologia e a formação de grupos de praticantes. Ele deixou registrados todos os resultados de suas ações. A vasta bibliografia inclui a publicação de 21 livros e cerca de 1000 artigos em periódicos.

Seu sentido de organização também rendeu frutos permanentes. Em primeiro de janeiro de 1895, Martel fundou a Société de Spéléologie, embrião da Societé Spéléologique de France, criada em 1936 e rebatizada de Fédération Française de Spéléologie, em 1963. A fundação, a estrutura organizacional e o estatuto da Société foram publicados no primeiro número do “Bulletin Spelunca”, periódico oficial da instituição, editado até os dias de hoje.

Os feitos de Martel foram reconhecidos e ele foi homenageado por diversas associações nacionais e internacionais de espeleologia e por diversos pesquisadores que se dedicaram a estudar temas sugeridos por ele. Martel não foi ligado a nenhuma academia, mas deixou um legado de conhecimento construído na prática para toda a humanidade e para a eternidade.

Fica aqui registrada a homenagem do Grupo Pierre Martin de Espeleologia a este que, para nós, é a inspiração para seguir adiante.

E. A. Martel em Gaping Gill, Yorkshire, Inglaterra, em 1895. Tela de Lucien Rudaux

[1] Marcel e Gabriel Gaupillat (primos de Martel, Philippe Cheilley, Emile Foulquier, Hippolyte Causse, Louis Armand (colega de Martel no direito), Claude Blanc, além de Emile Michel.

Obras de Referência

BAKER, Ernest A. Caving Episodes of Underground Exploration. Ed. Chapman & Hall  Ltd, 1970.

BOULANGER, Pierre. Grottes ET Abîmes. Nouvelles Editions Latines. Paris, 1966.

COURBON, Paul et al. Atlas of the Great Caves of the World. Ed. Cave Books, Detroit, 1989.

GUNN, J. Encyclopedia of Caves and Karst Science. Fitzroy Dearborn, 902 p. New York e London, 2004.

La’MOREAUX, Ph. E. History of Karst Hydrogeological Studies. Proceedings of the International Conference on Environmental Changes in Karst Areas -I.G.U.- U.I.S.- Italy 15-27 Sept. 1991 ; Quaderni del Dipartimento di Geografia n. 13. Università di Padova, pp. 215-229, Pádova,1991.

MINVIELLE, Pierre. La Conquete Souterraine. Ed. Arthaud. Paris, 1967.

SCHUT, Pierre-Olaf. L’exploracion Souterraine. Ed. L’Harmattan. Paris, 2007.

SHAW, Trevor R. History of Cave Science. Ed. Yhe Sydney Speleological Society, Sydney, 1992.

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