Reflexões de uma bióloga preocupada – A Ciranda das Coautorias (ou: como fazer um Curriculum Vitae com o mínimo esforço)

Receita infalível:

– Vá a uma localidade não estudada anteriormente;

– Colete a maior quantidade possível de material, sem dó nem piedade (mas não perca tempo pedindo autorização para tudo, basta pedir para algumas cavernas e táxons – quem vai verificar se você coletou muito mais que o necessário ou que o pedido?);

– Leve todo o material ao seu laboratório, onde você montou uma coleção de referência “oficial”, mas não a divulgue ou dê acesso a ninguém da comunidade científica, e muito menos deposite em coleções realmente oficiais, com curadoria própria, como museus – imagine se algum especialista descobre que você está identificando errado!;

– Identifique cada morfótipo como uma espécie diferente (esqueça variações individuais, de idade/fase de vida, polimorfismos em geral), de modo a multiplicar o número de táxons registrados e produzir listas bem extensas (incluindo absolutamente tudo que passou pela frente, sem se preocupar com o sentido biológico da listagem), que deem a impressão de que você é um coletor muito mais capacitado que qualquer outro;

– Localize especialistas nos táxons de interesse (hoje em dia é fácil, só pesquisar na internet) e ofereça exemplares em troca de dados de coleta (que estariam disponíveis de qualquer modo, pois eles são o mínimo requerido para inclusão em coleções) e informações ambientais irrelevantes para a taxonomia – muitos podem não aceitar a chantagem, mas alguns acharão que vale a pena (até porque coautoria hoje em dia é moeda de troca), e assim você economizará os 5-10 anos ou mais que levam para formar um especialista realmente capacitado para trabalhar com a sistemática de um grupo. Se você fizer isso com vários especialistas de grupos diferentes, estará economizando décadas da formação requerida para realizar trabalhos robustos e confiáveis;

– Nunca, em tempo algum, leia toda a literatura pertinente ao assunto estudado (e trabalhe com pesquisadores de fora da área, que não a conhecem), para não correr o risco de descobrir que a sua nova ideia brilhante ou o paradigma que você crê estar quebrando, na realidade são noções totalmente ultrapassadas, que vários outros já descobriram há anos ou décadas.

Uma alternativa um pouco mais digna, aplicável à descrição de espécies de grupos bastante distintos dos demais e inequívocos, mas que requer certo domínio da literatura (cuidado, isso pode tomar tempo!) é procurar figuras de animais próximos, similares, e copiar o modelo da descrição, apenas substituindo pelos dados do seu animal. O resultado é mais um número para seu CV, mesmo que a contribuição real para a sistemática seja limitada pela superficialidade do estudo e haja o grande risco de você perder, por falta de aprofundamento e experiência no táxon, aspectos evolutivos relevantes (mas quem se preocupa com evolução?).

Mas não esqueça – reivindique coautoria de qualquer trabalho que tenha qualquer relação, mesmo que remota, com você, não importa a área nem a sua contribuição intelectual.

Finalmente, uma sugestão: porque não montar uma cooperativa de publicações? Reúna nove colegas, cada um faz um trabalho e os dez coassinam todos os trabalhos. Ups…. isso já existe!

Autora (inconteste e declarada): Eleonora Trajano

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