Fonte: R7
Menos de um mês antes do Supremo Tribunal Federal julgar a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003, que regulamenta identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes de quilombos, a 4ª Vara Federal de Santos, em São Paulo, determinou a transferência de terras de uma empresa para um grupo de famílias descendentes de quilombolas. A sentença foi proferida no último dia 24 de março, em Ação de Usucapião ajuizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que representou as famílias.
No caso, a Advocacia-Geral da União (AGU), por meio da Procuradoria Federal Especializada do Incra, entrou, em movimento inédito, como substituta processual às famílias dos descendentes de quilombolas. Em vez de representar o Incra, agiu em nome da Associação de Remanescentes de Quilombos do Bairro André Lopes, na cidade de Eldorado Paulista, no Vale do Ribeira, sul de São Paulo.
Para isso, usou do Decreto 4.887/2003, que trata da desapropriação de terras em nome de descendentes de quilombolas. O artigo 15 do decreto autoriza o Incra a representar “os interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos das questões surgidas em decorrência da titulação de suas terras”. Alegou, então, legitimidade extraordinária para representar as famílias paulistas.
As terras pertenciam à empresa Alagoinha Empreendimentos, mas, de acordo com documentos apresentados pelo Incra ao juízo, eram ocupadas “há muito mais de dez anos” pelas famílias, “de forma mansa, pacífica e ininterrupta”. Com isso, o prazo para a companhia alegar a propriedade da terra já havia prescrito, configurando o usucapião dos descendentes de quilombolas.
Diferentemente do que acontece com as terras de reservas indígenas, que pertencem à União, mas são ocupadas pelos índios, os terrenos ocupados pelos quilombolas são de sua titularidade. Isso de acordo com o que está descrito no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT): “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Então, em vez de expropriar a terra e repassar a propriedade, o órgão pediu para que a Justiça declarasse a posse, por direito, das famílias, sem que precisassem ser “atravessadas”. Fazer o contrário, afirma o Incra, seria um “verdadeiro atentado ao erário”. O pedido foi aceito pelo juiz, e a Ação de Usucapião foi acolhida pela 4ª Vara Federal de Santos.
Ocupantes por direito
Para comprovar que as famílias do bairro André Lopes são, de fato, descendentes de ex-escravos quilombolas, o Incra apresentou um relatório técnico-científico de autoria do Instituto de Terras de São Paulo (Itesp), ligado à Secretaria de Justiça do governo estadual. O estudo afirma que a história do bairro André Lopes, no Vale do Ribeira, remonta ao século XVII, quando a região era usada para exploração de ouro.
O relatório do governo de São Paulo conclui que o bairro faz parte “um conjunto maior de inúmeras comunidades rurais de população afrodescendente no Vale do Ribeira, cujas origens remontam à história do ciclo minerador iniciado na região no século XVII, e à história do ciclo rizicultor [de plantações de arroz], que teve seu ápice no século XIX”.
Conclusão semelhante à da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, que diz serem “descendentes de homens e mulheres negros escravizados, e cujas origens estão diretamente ligadas à história da escravidão ocorrida no Vale do Ribeira”.
Baseada nos documentos e no que diz o artigo 68 do ADCT, a juíza do caso, Alessandra Nuyens Aguiar Aranha, decidiu pelo “reconhecimento da posse centenária, ininterrupta e pacífica das terras dos quilombos aos seus remanescentes, no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988, cabendo-lhes declarar o direito à aquisição da propriedade ocupada de forma coletiva”.
Competência usurpada
Por mais que a posição do Incra, e a decisão da Justiça Federal, tenha sido inovadora, elas podem cair por terra. É que a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003, em que se baseou a AGU para fazer o pedido, está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal.
Em Ação Direta de Inconstitucionalidade interposta pelo antigo PFL, hoje DEM, é alegado que o decreto usurpou a competência do Congresso Nacional para tratar de questões fundiárias. Diz o partido que somente leis podem tratar de procedimentos que acarretem em despesas ao erário, como no caso de expropriação de terras pelo Incra em nome de comunidades quilombolas.
O caso deve ser discutido pelo Supremo nesta quarta-feira (18/4), e está sob relatoria do ministro Cezar Peluso. Será o último grande caso relatado por Peluso enquanto ele ainda está, formalmente, na presidência. A partir da quinta-feira (19/4), o ministro deixa o cargo nas mãos do atual vice-presidente, ministro Ayres Britto.
Leia, abaixo, a sentença da Justiça Federal de Santos :
INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA – INCRA, na qualidade de substituto processual da Comunidade dos Remanescentes de Quilombos do Bairro André Lopes, propôs a presente AÇÃO DE USUCAPIÃO, nos termos do artigo 1.238 do Código Civil, artigo 68 do ADCT, 13 e 15 do Decreto nº 4.887/03 e 941 e seguintes do Código de Processo Civil, em face de ALAGOINHA CIA.DE EMPREENDIMENTOS GERAIS pleiteando seja declarado o domínio de área medindo 76,1397ha, denominada Gleba A, localizada no 13º Perímetro do Município de Eldorado Paulista, Estado de São Paulo, em favor da Associação dos Remanescentes de Quilombos do Bairro André Lopes, mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso, com cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade. Alega o autor que a preservação da cultura e das tradições das comunidades quilombolas tem escopo constitucional, na medida em que o artigo 68 do ADCT reconhece a propriedade definitiva das terras por elas ocupadas, devendo o Estado emitir-lhes os títulos.
Narra que os Remanescentes de Quilombos do Bairro André Lopes, legitimamente reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares, vêm exercendo a posse do imóvel de forma mansa, pacífica e ininterrupta, sem qualquer oposição por mais de 15 (quinze) anos. Aduz que referido bem é parte integrante de porção de terras maior, objeto da Transcrição nº 2.512 do Cartório de Registro de Imóveis do Município de Eldorado, de propriedade da empresa ré.
Na qualidade de órgão competente para realizar a titulação das áreas pertencentes aos remanescentes das comunidades de quilombos, nos termos do artigo 3º do Decreto nº 4.887/03 e, sendo inviável a propositura de ação de desapropriação, pugna pela procedência do feito. Com a inicial vieram documentos (fls. 16/211).Cientificado o Município de Eldorado (fl. 300), permaneceu silente. Citados os confrontantes “Associação dos Remanescentes do Quilombo de Ivaporunduva” e “Associação dos Remanescentes do Quilombo do Bairro de Nhunguara” (fls. 305/306), deixaram transcorrer in albis o prazo para defesa.Manifestou-se o IBAMA — Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis às fls. 316/325.O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — IPHAN informou não ter sido identificada nenhuma estrutura de interesse histórico-cultural passível de tombamento, tampouco manifestação cultural ou produção artesanal de relevante significado, que pudesse vir a ser registrada pelo IPHAN, inexistindo notícia de sítios arqueológicos na área ocupada (fls. 340/341).
A ASSOCIAÇÃO DE REMANESCENTES DE QUILOMBOS DO BAIRRO ANDRÉ LOPES requereu sua integração no pólo ativo (fls. 350/351).Intimada a União Federal e a Fundação Nacional do Índio — FUNAI, manifestaram não ter interesse no feito (fls. 355/356 e 382/383).Às fls. 376/380 esclareceu a parte autora que a área usucapienda limita-se apenas à Gleba A, de domínio particular. Pugnou a Fundação Cultural Palmares pela procedência da ação às fls. 385/397, juntando documentos (fls. 398/526).
O ESTADO DE SÃO PAULO manifestou interesse em acompanhar a lide, uma vez que o 13º e o 27º Perímetro de Eldorado Paulista foram inteiramente discriminados, havendo na região inúmeras terras devolutas. Requereu, ainda, fosse a autora intimada a fornecer elementos que melhor identificassem a área objeto da ação (fls. 532/531), pedido indeferido pelo Juízo, considerando que o processo já se encontrava instruído com planta e memorial descritivo relativos à Gleba A, objeto da ação (fl. 532). Diante da não localização pessoal da empresa Alagoinha Cia. De Empreendimentos Gerais, procedeu-se à sua citação por edital (fl. 676). Nomeada curadora especial, sobreveio contestação por negação geral de fls. 723/724.
Concordou o INCRA com o ingresso da Fundação Cultural Palmares no pólo ativo da demanda (fl. 700).Intimado o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais – IBAMA, respondeu não ter interesse em integrar a lide, diante da ausência de Unidade de Conservação Federal na área usucapienda (fl. 709).Instadas as partes a especificarem provas, manifestaram-se às fls. 757, 823/824, 841 e 847. O Ministério Público Federal pugnou pelo prosseguimento do feito. Vieram os autos conclusos para sentença.É o relatório. Fundamento e decido.Pois bem. Trata-se de ação de usucapião referente a uma área de 76,1397ha, denominada Gleba A, localizada no 13º Perímetro de Eldorado Paulista, por meio da qual os autores objetivam a declaração, por sentença, de domínio e outorga de título coletivo e pró-indiviso em favor da Associação dos Remanescentes de Quilombos do Bairro André Lopes.
Conforme se infere dos documentos de fls. 61/64, o imóvel pretendido faz parte de porção maior, objeto da Transcrição nº 2.512 do Cartório de Registro de Imóveis do município de Eldorado, de propriedade de Alagoinha Companhia de Empreendimentos Gerais.Os demandantes fundamentam seu pedido no fato de a Comunidade dos Remanescentes de Quilombos do Bairro André Lopes exercer sobre o imóvel posse mansa, pacífica e ininterrupta por longos anos, nele realizando benfeitorias, cultivando o solo para sua subsistência.Asseveram, ainda, que a regularização das áreas remanescentes de quilombos se faz necessária para atender aos interesses constitucionais insculpidos no artigo 68 do ADCT. Cumpre ressaltar, de início, que havia controvérsia quanto a extensão do imóvel usucapiendo, uma vez que a petição inicial não deixava clara a gleba pretendida e os documentos que a acompanhavam indicavam uma área total de 3.139,8366ha, localizada no 13º e 27º Perímetro de Eldorado Paulista, compreendendo as Glebas A, B, C, D e E, essas duas últimas abrangidas pelo Parque Estadual de Jacupiranga (fls. 16/29).
Daí o porquê de o IBAMA — Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis ter alegado que, de acordo com a planta acostada à inicial, o imóvel pretendido estaria parcialmente inserido nos limites do Parque Estadual de Jacupiranga, em regime de proteção integral e de domínio público estadual, não havendo óbice relativamente às áreas particulares, não inseridas no referido Parque. O Estado de São Paulo, igualmente, opôs resistência à pretensão, alegando que o 13º e 27º Perímetro de Eldorado Paulista foram inteiramente discriminados, sendo que o 13º conta com terras julgadas devolutas e particulares, e o 27º é integralmente composto por terras devolutas estaduais, insuscetíveis de usucapião, nos moldes do art. 183, 3º da CF. Às fls. 376/380, contudo, o autor esclareceu que a área a ser usucapida diz respeito apenas à GLEBA A, do 13º Perímetro, cuidando-se apenas de terras particulares.
Corroborando não se tratar o imóvel pretendido de terras de domínio público, a Portaria nº 4, de 04/08/79 (fl. 758) e o parecer de fls. 818/819, ambos da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo, confirmam que a Gleba A objeto da lide é de natureza particular:”Preliminarmente, no que tange à natureza das áreas envolvidas, devemos nos socorrer do mapa (e quadro de áreas) já constante destes autos (fl. 38), por meio do qual podemos verificar que, da área daquele levantamento planimétrico, a Gleba “A” é de natureza particular (13º Perímetro de Eldorado Paulista)…Acresça-se que a Gleba “A” é parte de área maior (relativa à Transcrição nº 2.512 do Serviço Registral de Imóveis de Eldorado, julgada particular na competente Ação Discriminatória, conforme cópia da Carta de Sentença ora acostada (…)”Não restam dúvidas, portanto, de que o objeto da presente ação efetivamente não abrange bem público estadual, sendo possível ser usucapido. Fixada tal premissa, cumpre perquirir se a Comunidade dos Remanescentes de Quilombos do Bairro André Lopes preenche os requisitos necessários à prescrição aquisitiva.
Pois bem. O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias dispõe: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.Em primeiro lugar, verifico que a Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, reconheceu a Comunidade André Lopes na condição de remanescente das comunidades de quilombos, em processo administrativo instaurado com essa precípua finalidade, na forma do Decreto nº 4.887/03 (fl. 413).Conforme se verifica daquele processo, juntado por cópia nos autos (fls. 398/526), restou exaustivamente demonstrado que os moradores da Comunidade de André Lopes, situada no Município de Eldorado, “são descendentes de homens e mulheres negros escravizados, e cujas origens estão diretamente ligadas à história da escravidão ocorrida no Vale do Ribeira”, conforme afirmado pela antropóloga Maria Celina Pereira de Carvalho, vinculada à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, ao concluir “Relatório Técnico-Científico sobre a Comunidade de Quilombo André Lopes”.
Extrai-se de referido relatório (fls. 138/187) que o Vale do Ribeira, onde localizada a Comunidade em estudo, por ser uma região de grandes riquezas em recursos naturais, atraía, para seu interior, a atenção de mineradores, cuja atividade esteve apoiada na mão-de-obra escrava durante os séculos XVII e XIX. Diversos bairros rurais negros existentes na região formaram-se pela libertação ou abandono dos escravos após a decadência da atividade mineradora, ou pela fixação de escravos em fuga.O estudo detalha a história da ocupação da região do Vale do Ribeira e revela a existência de mais de um bairro rural formado por comunidades remanescentes de quilombolas, a exemplo de Ivaporunduva, Nhunguara e São Pedro (antiga Lavrinha); descreve sua ocupação espacial, organização social e econômica, concluindo que a posse da comunidade André Lopes é longeva. Vejamos (fls. 157/164):”A história de André Lopes confunde-se com a de outro bairro vizinho, Nhunguara. Os mais velhos costumam dizer que “era tudo uma coisa só”. Os antropólogos do Ministério Público Federal verificaram que:Os levantamentos das histórias locais que relatam a formação dos bairros de Nhunguara e André Lopes mostraram, além das estritas relações sociais e de parentesco mantidas entre os dois núcleos, uma origem historicamente entrelaçada (S Conforme ainda os antropólogos do MPF, é Antonio Paulino de Almeida que esclarece bem as origens do nome do bairro:A localidade denominada André Lopes, conforme afirma Paulino de Almeida (1955:11) “tem seu nome em uma lenda segundo a qual aí teria naufragado o sagento-mór da Ilha de São Sebastião André Lopes de Azevedo, casado com Dona Maria Francisca e falecido na Freguesia de Xiririca, onde residia aos 15 de junho de 1764, na avançada idade de cem anos” (Krug, 1939: 589)… (…).(…) a formação do bairro André Lopes deve ser compreendida e analisada a partir de duas perspectivas:1. A expansão territorial de grupos negros estabelecidos no entorno, como Ivaporunduva, São Pedro (antiga Lavrinha) e Nhunguara; 2. As fugas do recrutamento para a Guerra do Paraguai. Vejamos alguns trechos do laudo do MPF que apontam para essas duas perspectivas:”Segundo o relato de Maria Adelaide Pedrosa, aqueles que “abriram o lugar” em Nhunguara e André Lopes, seriam os antepassados de seu pai Tomé Pedroso de Moraes que era filho de Berberino e Mariana Dias, da Barra do Nhynguara. A primeira mulher de Tomé teria sido Joana Dias, de Ivaporunduva, e a segunda, Donária Arcângela Furquim, de São Pedro. Donária seria neta de Bernardo Furquim, filha de Ana Maria Furquim com João Vieira. João Vieira teve um rol de irmãos, todos fixados em Nhunguara (…).O tronco Vieira é relacionado pelos informantes, também, à formação do bairro André Lopes. A partir de 1830, quando teria entrado pelos sertões de Nhunguara, a descendência dos primeiros Vieira, lembrados pelos informantes e identificados nos registros eclesiais, ter-se-ia espalhado pelas áreas de André Lopes também. Maria Adelaide Pedrosa relata: “André Lopes de cima é de João Vieira e André Lopes de baixo é dos Maia, avô desse João que tem aí. O de cima, é dos Vieira e o de baixo é dos Maia. Aqui é André Lopes de cima, é dos Vieira, dos Dias.” Um certo José Ortiz, que dia 13/12/1856, declarou a posse de um sítio “na paragem denominada André Lopes” no assento nº 479 do livro de Terras de Xiririca, descrevia a confrontação de suas terras com “Domingos Vieira em um pé de Guararema” (Stucchi, 1998: 665-66)(…)O povoamento de várias localidades habitadas fundamentalmente por populações negras no Vale do Ribeira, como Nhunguara e André Lopes e Sapatu, também deve ser analisado à luz das fugas dos recrutamentos para a composição dos batalhões de combate para a Guerra do Paraguai. Uma profusão de relatos sobre a escolha de zonas de refúgio que acolheram inúmeras fugas está presente nas narrativas dos informantes residentes em vários bairros da região. Maria Adelaide Pedrosa relata que quem “abriu” a Caverna do Diabo, localizada no bairro de André Lopes, foi o tronco da família Dias:”Na caverna quem morava era Filadelfo e Raimundo (…). Filadelfo era cunhado da mamãe (Donária Arcângela Furqui), marido de Mapoge. Foram os pais de Ana Santana que abriram lá (…), tinha outro filho também, o Osório que se mudou para Capão Bonito (…). Agora tem um Parque na caverna, (…) o parque invadiu tudo, eles tiveram que ir cada vez mais para dentro, teve que sair.”Ao apontar os motivos que os levaram a ocupar a região da hoje chamada Caverna do Diabo, a informante indica: “ela foi aberta no tempo da guerra do tal Paraguai, saíram correndo. Correram tudo para lá, trabalharam mato a dentro na boca da caverna, boqueirão grande para dentro eles trabalhavam, nessa época eles era todos solteiros”.As histórias a que nos remetem os nomes de pessoas e lugares presentes nestes dois primeiros parágrafos dos transcritos do laudo do MPF apontam para um amplo movimento de afluxo de grupos negros rumo a um processo de acamponesamento.
Tais grupos, marginalizados pela sociedade branca dominante, constituíram seu próprio lugar dentro dessa mesma sociedade. A história de André Lopes certamente faz parte desse movimento. É importante observarmos que “ancestrais fundadores” de comunidades como São Pedro/Galvão (Bernardo Furquim), Nhunguara/André Lopes (João Vieira) e Sapatu foram contemporâneos, como mostra a farta documentação existente sobre batismos e registros de terras. Eles tiveram importante papel na constituição dessa área reconhecida no entorno como sendo de bairros de pretos, e também na configuração da economia política desses bairros, uma vez que eram “forte” (como dizem os moradores a respeito de Bernardo Furquim e de João Vieira). Ou seja, lideravam a produção e o comércio de consideráveis quantias de produtos da roça e outros, como farinhas de milho e mandioca e aguardente de cana.(…)Até cerca de dez anos atrás, muitas famílias ainda conseguiam viver exclusivamente da produção de excedentes, produzindo para o consumo e para a obtenção de bens que não eram produzidas nos sítios. Contudo, nos dias de hoje, algumas famílias plantam feijão, arroz, milho, amendoim, mandioca batata doce alguns tipo de cará, e produtos de horta apenas para o consumo interno do grupo.Algumas vezes, o trabalho mais imediato de obtenção de alimento, como os cuidados com a horta e a pesca, é feito muitas vezes pelas mulheres, considerando que os homens vão trabalhar fora para a obtenção de dinheiro. Muitos trabalham nas fazendas das imediações e voltam para casa todos os dias. (…)Por volta das décadas de 1950/60, as populações rurais negras do Vale começam a ter alterado o quadro socioeconômico apoiado na pequena produção de excedentes (…), quando a indústria do palmito volta-se para a região.” E conclui: “A Comunidade Negra de André Lopes faz parte de um conjunto maior de inúmeras comunidades rurais de população afrodescendente existentes no Vale do Ribeira, cujas origens remontam à história do ciclo minerador iniciado na região no século XVII, e á história do ciclo rizicultor, que teve seu ápice no século XIX. Esses dois ciclos econômicos estiveram apoiados na mão-de-obra de homens e mulheres negros escravizados. Fugitivos e seus descendentes fundaram grupos que deram início a um processo de acamponesamento que resultou no adensamento populacional negro da região. (…)Possuem semelhanças estruturais com as demais populações rurais da região, que Maria Isaura Pereira de Queiroz chama de bairros rurais. Contudo, diferenciam-se destes últimos não apenas pela cor da pele dos indivíduos, mas ao passado relacionado à escravidão, pela memória carregada de sentido étnico, e pela consciência de sua história.Neste sentido, as comunidades rurais negras – não apenas no Vale, mas em diversos lugares do país – vêm (re) elaborando e fortalecendo sua identidade quilombola com vistas a reivindicar o direito à titulação de seus territórios previsto no artigo nº 68 do ADCT. Este e suas posteriores regulamentações como legislação imperativa, apresentam-se como mecanismo ativo capaz de saber, ainda que parcialmente, a dívida social e moral de toda uma nação com um segmento étnico que, escravizado, foi responsável por grande parte das riquezas acumuladas pelo país e permanece alijado das benesses deste empreendimento. (…)”
Como se extrai do trabalho em referência, constata-se que desde o século XVIII, homens de famílias negras já estavam estabelecidos no bairro André Lopes, inexistindo dúvidas quanto ao exercício da posse centenária por aquela comunidade, desde seus antepassados. Corroborando, as fotografias encartadas aos autos (fls. 175/176), revelam o modo de vida dos moradores daquela comunidade, destacando o aspecto das construções, a aparência e cor de pele de seus integrantes, demonstrando sua descendência remanescente de quilombo. Nesses termos, conforme o disposto no artigo 68 do ADCT, que na verdade traz uma nova espécie de usucapião, impõe-se, à Comunidade André Lopes, o reconhecimento da posse (animo domini) centenária, ininterrupta e pacífica das terras dos quilombos aos seus remanescentes, no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988, cabendo-lhes declarar o direito à aquisição da propriedade ocupada de forma coletiva.
Conforme já decidido pelo E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região no âmbito do julgamento da Remessa Oficial nº 2004.03.99.037453-4, de relatoria do I. Juiz Federal Convocado HÉLIO NOGUEIRA: “o direito da comunidade quilombola obter o domínio da área que imemorialmente ocupa constitui um direito fundamental (art. 68 do ADCT e art. 5º, 2º da Constituição Federal), pois diz respeito diretamente à dignidade de cada integrante daquela comunidade. (…) Ademais, assegurar a terra para a comunidade quilombola afigura-se imprescindível não só para garantia de sua própria identidade étnica e cultural, mas também para salvaguardar o direito de todos os brasileiros à preservação do patrimônio histórico-cultural do país (art. 215 da Constituição Federal).”Mister destacar, por fim, que a oposição inicialmente feita pelo Estado de São Paulo encontra-se superada na medida em que a parte autora almeja a usucapião apenas da Gleba A, de propriedade particular, conforme já consignado no início. E no que se refere à empresa Alagoinha Cia. de Empreendimentos Gerais, citada por edital, não veio à defesa de sua propriedade, limitando-se a curadora especial nomeada nos autos a dizer que “os documentos carreados aos autos não comprovam tal posse” (fl. 724).A sentença, portanto, servirá como título hábil para o registro imobiliário (CPC, art. 945), que deverá ser aberto, observadas as exigências da Lei de Registros Públicos (art. 167, I nº 10 c/c arts. 176 e 228).Diante de tais fundamentos, com fulcro no artigo 269, inciso I do Código de Processo Civil, julgo procedente a demanda para declarar, por sentença, o usucapião de área medindo 76,1397ha, objeto da Transcrição nº 2.512 do Cartório de Registro de Imóveis de Eldorado, denominada Gleba A, localizada no 13º Perímetro do Município de Eldorado Paulista, Estado de São Paulo, em favor da Associação dos Remanescentes de Quilombos do Bairro André Lopes, mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso, com cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade.Expeça-se mandado ao Cartório de Registro de Imóveis de Eldorado, instruindo-o com cópia da presente sentença, da petição inicial, planta e memorial descritivo de fls. 376/380, para que, observadas a formalidades legais, sejam adotadas todas as medidas necessárias à efetivação deste título. Em razão da sucumbência, condeno o Estado de São Paulo e a empresa Alagoinha Cia. de Empreendimentos Gerais ao pagamento de honorários advocatícios, que arbitro em 10% sobre o valor dado à causa, devendo a importância ser rateada entre os demandados. Custas na forma da lei.Sentença sujeita ao reexame necessário.P.R. e Intimem-se.Santos, 24 de fevereiro de 2012.
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